De
maneira geral, é possível afirmar que a vida cristã possui características e
objetivos comuns em todos os momentos da história. A ordem de “santificar a
Cristo no coração” (1Pe 3.15), por exemplo, se aplica a todos os cristãos em
todos os momentos históricos. No entanto, é possível afirmar que cada momento
histórico apresenta desafios próprios para o cristianismo. Nós somos chamados
por Deus para viver a vida cristã num tempo específico. Por isso, no exercício
de santificar a Cristo no coração, por exemplo, cristãos de diferentes épocas
se deparam com diferentes dilemas e desafios.
Procuraremos
avaliar à luz da Bíblia, um desafio próprio para os cristãos contemporâneos,
que vivem na chamada pós modernidade.
I. O relativismo dos tempos pós-modernos
Estudiosos
de nosso tempo têm o denominado de pós-modernidade. Esta nomenclatura revela
que o momento histórico em que vivemos é um momento que segue o período
moderno. No entanto, a relação entre um momento histórico (modernidade) e outro
(pós-modernidade) não é apenas temporal ou histórica, mas também conceitual e
cultural. Em outras palavras, a pós modernidade
não é apenas um período que segue a modernidade em termos temporais, mas um
período que segue a modernidade conceitual e culturalmente, rompendo, de certa
forma, com aspectos do modo de pensar, viver e se organizar, próprio da
modernidade.
Uma
das características mais marcantes da pós-modernidade é o rompimento com o que
poderíamos chamar de universal ou geral, em prol do particular ou individual.
Na modernidade se pensava na história humana de modo geral, em termos de uma
história universal. Hoje em dia o que importa é a história individual, quando
muito a de um grupo de pessoas, mas não se costuma falar mais em uma história
da humanidade. Na modernidade se falava também em uma verdade universal e
absoluta. Para nossos dias, no entanto, falar em uma verdade universal e
absoluta é algo quase que inaceitável. Por
fim, a modernidade podia falar de um modo de agir universal e norteado por
valores absolutos, enquanto para a pós-modernidade este é um discurso
ultrapassado. Isto não significa que a modernidade tenha sido
necessariamente cristã, mas apenas que ela teve em comum com a visão de mundo
cristã o fato de assumir o universal e absoluto.
Ao
contrário da modernidade, nosso tempo tem como princípio o relativismo. Tendo
valorizado o particular, em detrimento do universal, a pós-modernidade
abandonou a ideia de absolutos e assumiu o relativismo. O relativismo é a teoria de que a base para os julgamentos sobre
conhecimento, cultura ou ética difere de acordo com as pessoas, com os eventos
e com as situações (Dicionário de Ética Cristã, Carl Henry, Editora
Cultura Cristã).
Esse
relativismo contemporâneo se aplica aos três elementos apresentados no
parágrafo anterior: história, conhecimento e ética. A pós-modernidade
questiona, primeiramente, a existência de uma história comum que possa, de
alguma forma, identificar os homens de modo universal. Em segundo lugar, no
âmbito do conhecimento, questiona a existência de uma verdade que seja
universal e absoluta. Por consequência, questiona pôr fim a possibilidade de se
estabelecer princípios morais que devam reger a conduta de todas as pessoas
universalmente. Nosso tempo rejeita qualquer critério universalmente
aceito para se medir valores (Carl Henry).
Esta
teoria consideravelmente complexa (o relativismo) pode ser vista nas palavras e
ações do dia a dia das pessoas em nosso tempo. Provavelmente a maioria dos
leitores já consegue perceber o quanto o homem contemporâneo se preocupa com a
sua história individualmente, como se ela não estivesse relacionada à história
de modo geral. Provavelmente, a maioria dos leitores deste texto já teve uma
discussão encerrada com as seguintes palavras: “não vale a pena discutir, afinal, você tem a sua verdade e eu tenho a
minha”. Ou, quem nunca foi perguntado de forma retórica, depois de ter
emitido um juízo de valor sobre algo ou alguém: “quem é você para julgar? ”. Essas palavras e ações revelam como o
relativismo tomou conta de nossos dias.
A
igreja, enquanto comunidade plantada e imersa em seu tempo histórico sofre as
consequências deste relativismo. Uma das maiores evidências da influência do
relativismo na igreja contemporânea é sua tendência ao ecumenismo. A defesa da
aceitação indiscriminada de toda e qualquer crença revela o quanto o caráter
exclusivista do evangelho soa mal aos ouvidos contemporâneos. Outra característica que tem se tornado cada
vez mais comum no meio da igreja é o questionamento da necessidade e a ausência
da disciplina eclesiástica. Esta prática revela que não apenas o
relativismo quanto ao conhecimento tem adentrado a igreja, mas também o
relativismo ético-moral.
II. O relativismo e a Bíblia
O
relativismo é uma teoria coerente com os pressupostos que a definem. Mas seria
coerente com a cosmovisão cristã? Uma rápida consideração das verdades bíblicas
é suficiente para revelar que o relativismo não se sustenta diante de alguns
elementos fundamentais da fé cristã.
A. A Bíblia e a história
Ao
considerarmos a história à luz da Bíblia, concluímos que, embora seja possível
falar em histórias individuais, existem elementos fundamentais que na história
humana que identifica todos os indivíduos, universalmente.
Pense
no tema bíblico básico: Criação, Queda e Redenção. A narrativa bíblica afirma
que Deus é o autor da realidade. Tudo aquilo que existe foi criado por Deus (Gn
1.1). O homem não é mero produto de uma evolução biológica, mas um ser criado à
imagem e semelhança de Deus (Gn 1.26). A origem do homem, portanto,
identifica-nos todos uns com os outros. Além da criação, somos identificados
pela queda em pecado. A rebeldia não fora uma característica específica do
primeiro casal, mas é algo que se perpetua nas gerações. A Bíblia é contundente
em afirmar que “todos pecaram e destituídos estão da glória de
Deus” (Rm 3.23); ou ainda que “não há um justo sequer”
(Rm 3.10). Deste modo, nossa história se identifica com a história de todos os
demais homens, não apenas pela criação, mas também pela queda. Por fim, nossa
história se identifica com a história de todos os demais pela redenção. É claro
que a identificação, neste ponto, não se dá pelo fato de serem todos salvos,
mas pelo fato de que nosso destino eterno se define pela nossa relação com
Jesus Cristo e o plano redentor de Deus nele proposto. Mesmo distinguindo entre
salvos e perdidos, a Bíblia identifica todos eles em termos finais, ao afirmar,
por exemplo, que todo joelho se dobrará e toda língua confessará
que Jesus Cristo é Senhor, para a glória de Deus Pai (Fp
2.10-11).
A
tríade Criação, Queda e Redenção é o elemento unificador da história humana.
Embora existam particularidades na história dos indivíduos, existem aspectos em
que a história é universal; a história do homem criado à imagem de Deus, que se
rebelou contra ele, e foi alvo da graça de Deus em Cristo Jesus.
B. A Bíblia e a verdade
Segundo
a Bíblia, Deus não apenas trouxe a realidade e o homem à existência, mas se
revelou. Aliás, o próprio ato criador é revelação. Deus criou todas as coisas
pela sua Palavra (E disse Deus… Jo 1.1-2). Esta é a razão pela qual a realidade
criada revela quem Deus é; “os céus proclamam a
glória de Deus, e o firmamento anuncia as obras de suas mãos”
(Sl 19.1).
O
Deus da Bíblia, portanto, não é imóvel, mudo, mas é um Deus que vai ao encontro
do homem e fala com ele. Desde muito cedo somos informados pela Bíblia deste
movimento de Deus em relação ao homem. De acordo com os capítulos iniciais do
Gênesis, ouvir a voz de Deus, que andava no jardim pela viração do dia, parece
ser algo com o qual Adão e Eva estavam acostumados (Gn 2.16; 3.8). Mesmo após a
Queda, Deus fala com o homem (Gênesis 3.8). Durante toda a história, Deus
continuou falando ao homem, e à medida que falava, Deus tomava providências
para que suas palavras fossem preservadas para toda a posteridade (Êx 17.14;
34.27).
Até
que ele falou de modo pessoal, pela pessoa de Cristo Jesus. Ele, a Palavra que
se fez carne e habitou entre nós (Jo 1.14) é a revelação maior de Deus. Ele é a
expressão exata do seu Ser (Hb 1.3), que se apresentou dizendo: “quem me vê, vê aquele que me enviou” (Jo 12.45). Este mesmo Jesus se define como o
caminho, a verdade e a vida (João 14.6), aquele cujo conhecimento
significa liberdade (Jo 8.32).
Deus
é a verdade, e ele se revelou a nós por meio de sua Palavra. Por isso, a
verdade não é uma questão meramente subjetiva ou de construto social. Ainda que
o homem atribua significados à realidade, a verdade é objetiva. Nós nos
aproximamos da verdade, todas as vezes que nos aproximamos do que Deus revelou
por sua Palavra. O contrário também é verdadeiro. Sempre que nos distanciamos
da revelação que Deus deu por intermédio de sua Palavra, nos distanciamos da
verdade. A Palavra de Deus é a verdade (Jo 17.17).
C. A Bíblia e a moralidade
Assim
como o relativismo ético é resultado do relativismo no âmbito do conhecimento,
assim também a crença de que Deus se revela em sua Palavra tem como
consequência a existência de valores morais universais e absolutos. Ao se
revelar, Deus demonstrou sua vontade ao homem; o modo como Deus deseja que o
homem viva neste mundo.
Desde
o princípio o relacionamento de Deus com o homem é marcado pelo fato de que
Deus é Senhor, e o homem é servo. Este fato de que Deus tem direitos sobre o
homem para requerer dele obediência, é uma implicação natural da crença na
verdade bíblica da criação. É possível dizer que, como criador do homem, Deus
tem direitos autorais sobre o homem, e este direito se revela no fato de que
Deus se relaciona com o homem na posição de seu Senhor.
A
narrativa bíblica da criação apresenta Deus não apenas criando o homem, mas
definindo, por meio de ordenanças, seu propósito e significado. Logo em Gênesis
1, encontramos o imperativo: “sede fecundos,
multiplicai-vos”. Apenas um capítulo depois encontramos a ordem
divina, que por ter sido desobedecida, deu origem a toda sorte de males que
experimentamos ainda hoje; “de toda árvore do
jardim comerás livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não
comerás; porque, no dia em que dela comeres, certamente morrerás”
(Gn 2.16-17). Quando, depois da Queda, o mal havia se alastrado sobre a terra,
e Deus se apresentou a Noé, foi com imperativos que ele o fez: “Contigo, porém, estabelecerei a minha aliança; entrarás na
arca, tu e teus filhos, e tua mulher, e as mulheres de teus filhos”
(Gn 6.18). Posteriormente, Deus se apresentou a Abrão, e mais uma vez o fez de
forma imperativa: “Ora, disse o Senhor a Abrão: Sai da tua terra,
da tua parentela e da casa de teu pai e vai para a terra que te mostrarei”
(Gn 12.1). Todas estas passagens revelam que Deus se relaciona com o homem como
Senhor, e o tem como seu servo. E, na qualidade de Senhor, Deus estabelece os
princípios por meio dos quais o homem deve viver neste mundo.
Os
dez mandamentos são característicos desta vontade divina revelada em sua
Palavra. Eles têm sido chamados de a lei moral de Deus, isto é, o conjunto de
preceitos divinos absolutos e atemporais. A causa pela qual são atemporais e
absolutos é o fato de que se fundamentam no caráter de Deus. E, sendo Deus
imutável em seu ser, as perfeições de seu caráter, nas quais se baseiam os
mandamentos, são imutáveis também. Essa é a razão pela qual se pode dizer que
os dez mandamentos revelam a vontade atemporal e absoluta de Deus. “A tua justiça é justiça eterna, e a tua lei é a própria
verdade” (Sl 119.142).
III. A igreja: coluna e baluarte da verdade
Como
temos visto, uma visão cristã do mundo pressupõe a existência de absolutos.
Deus se revelou e em sua Revelação apresenta a história universal, nos oferece
a verdade e os padrões morais para a vida. 1Timóteo 3.14-15 afirma que a igreja
é coluna e baluarte da verdade. As duas palavras, “coluna” e “baluarte”,
indicam algo que sustenta e dá firmeza. Se pensarmos na metáfora de um
edifício, por exemplo, e considerarmos o papel das colunas, como parte das
estruturas que mantém um prédio de pé, perceberemos bem o que a Escritura
deseja ensinar nesta passagem.
Essa
metáfora não ensina que a igreja seja a fonte originadora da verdade. Ao
contrário do que pensa o romanismo, não é a igreja quem define e estabelece o
que é a verdade. A fonte originadora da verdade é Deus mesmo. E a igreja é a
guardiã, a protetora, a defensora da verdade revelada e estabelecida por Deus. E
diante dito sobre a igreja chama a nossa atenção para a necessidade de
avaliarmos nosso compromisso com a verdade em tempos em que ela é tão
questionada. Um detalhe importante é que 1Timóteo 3.14-15 não está falando
sobre algo que a igreja deve se esforçar para ser, mas sim o que a igreja é. O
texto está definindo a igreja. Isto significa que um dos maiores
compromissos da igreja é seu compromisso com a verdade, de modo que, se uma
comunidade não é uma coluna e fundamento da verdade, ela não é uma verdadeira
igreja de Cristo.
Conclusão
Vivemos
tempos de desconsideração para com a verdade. Cada um parece defender e viver
de acordo com o que pensa ser mais correto. No entanto, a Bíblia nos ensina que
temos uma história comum, uma Revelação absoluta e princípios éticos
normativos. E Deus estabeleceu sua igreja como coluna e baluarte da verdade.
Isto significa que uma caraterística fundamental da igreja de Cristo é seu
apego à verdade e sua proclamação.
Pr. Capelão Edmundo Mendes Silva